A teologia crítica de Kant: da fé racional à fé reflexionante - Fco das Chagas de Oliveira Freira

A teologia crítica de Kant: da fé racional à fé reflexionante

*Franscisco das Chagas de Oliveira Freire

(Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra. https://orcid.org 0000-0002-8000-5447. Contato: freirefranz@gmail.com). 

Resumo

O rigor com que Kant nega a possibilidade de demonstração  teórica  da  existência  de  Deus,  aliada  a  uma  hermenêutica que focaliza o sistema kantiano a partir da teoria do conhecimento, induziu numerosos intérpretes a considerar a expressão “teologia kantiana” como um oximoro. Intérpretes prestigiados  o  veem  como  agnóstico  ou,  na  melhor  das  hipóteses,  deísta.  Em  todo  caso,  Kant  não  admitiria  um  fundamento  racional  para  a  religião  e  a  teologia.  O  presente  artigo tem a intenção de examinar os princípios e condições de  legitimidade  que  viabilizam  a  teologia  kantiana.  A  teologia  encontra  fundamento  numa  necessidade  subjetiva  da  razão. Trata-se de uma necessidade moral de representação teleológica, sem a qual a vontade não pode ser determinada. Embora esteja fundamentada na moral, a teologia se constitui em uma disciplina autônoma. A fé está enraizada na racionalidade  e  não  pode  ser  ignorada  sem  que  a  razão  entre  em contradição consigo mesma. A fé racional pura deve ser a bússola e o parâmetro seguro para a fé reflexionante, ou seja,  para  o  pensamento  sobre  o  incomensurável  e  obscuro  espaço do suprassensível. Kant legitima o pensamento – por oposição a conhecimento – como alargamento do puro conceito do entendimento,

Palavras-chave:Teologia. Moral. Fé racional. Fé reflexionante. Pensamento.

     A filosofia  crítico-transcendental  implica  restrições  epistêmicas, que  vetam  a  metafísica  –  e  seus  objetos:  Deus,  a  liberdade  e  a  imortalidade  –  no  âmbito  da  razão  teórica  (KrV,  A  337/B  395,  nota). Na dialética transcendental, a racionalidade teórica vê em Deus uma  ideia  da  razão,  meramente  regulativa,  situada  no  mundo  inteligível.  Kant rechaça as demonstrações tradicionais pró ou contra a existência de Deus e critica os argumentos ontológicos, cosmológicos e físicos-teológicos. Na primeira crítica, combinam-se duas interpretações sobre o significado de mundus intelligibilis, que  tornam  ambíguo  o  conceito  de  Deus.  Numa  abordagem  ontológica, na medida em que não comporta a possibilidade de intuição sensível, Deus é um ens rationalis, isto é, um de nada de fenomenalidade (KrV, A 290-291 /B 347-348. KrV, B 307-309)1Nesse caso, Deus é uma ideia, algo pensável e possível  como  fundamento  numênico,  pois  não  contém  contradição,  mas  cuja  realidade e efetividade não se podem demonstrar. Numa abordagem metodoló-gica ou semântica, o mundus intelligibilis não é mais que o conceito universal de  um  mundo  em  geral,  “em  que  se  abstrai  de  todas  as  condições  da  intuição  do mesmo e em relação ao qual não é possível, portanto, nenhuma proposição sintética, nem afirmativa nem negativa” (KrV, A 433/B 461)2. Haveria uma única realidade ontológica, da qual o númeno e o fenômeno são apenas “pontos de vis-ta” [Standpunkt] (KrV, A 536/B 564; B XXVI-XXVII; A 38/B 55; A 808/B 836; A433/B 461). Nesse caso, o conceito de Deus pode ser interpretado como uma categoria meramente regulativa, útil para fins heurísticos, destituído de qualquer referência ontológica (KrV, B XXVII). Na esfera teórica, embora pensável e possível, Deus tem um sentido estritamente negativo e problemático.

    O rigor com que Kant nega a possibilidade de demonstração teórica da exis-tência  de  Deus,  aliada  a  uma  hermenêutica  que  focaliza  o  sistema  kantiano  a  partir da teoria do conhecimento, induz os intérpretes a considerar a expressão “teologia kantiana” como um oximoro (PALMQUIST, 2008, p.17). Intérpretes prestigiados o veem como agnóstico ou, na melhor das hipóteses, deísta (WOOD, 1991). Gerold Prauss (1989, p. 39) e Henry Allison (2004, p. 16-19), defenderam que, ao invés de pensar dois mundos ontologicamente distintos – o mundo sensível e o mundo inteligível, no qual Deus é representado como criador e legislador moral do mundo – Kant distinguiu duas perspectivas hermenêuticas – a sensível e a inteligível – num mesmo mundo. Esses autores rechaçam a concepção que reifica a coisa em si mesma e o mundo numênico. Antes da “coisa em si” ser a condição do fenômeno, o fenômeno é a condição da “coisa em si”. Em todo caso, a filosofia de Kant não admitiria um fundamento racional para a religião e a teologia.

    O presente artigo tem a intenção de examinar os princípios e condições de legitimidade que viabilizam a teologia em Kant. Constata-se que somente pela racionalidade prática,  estética  e  teleológica  Deus  adquire  estatuto  de  realidade  efetiva e a teologia, viabilidade. A filosofia crítico-transcendental encerra uma profunda transformação no conceito de racionalidade. Institui-se a racionalidade complexa e  procedural  como  crítica  à  noção  tradicional    eminentemente  substancial    de  racionalidade.  A  razão  kantiana  é  pluridimensional    teórica,  prática,  estética  e  teleológica    e  apresenta  princípios  diversos  e  condições  de  legitimidade diferentes para cada dimensão discursiva. Importa, pois, descrever o modo como a teologia crítica está radicada na racionalidade, assim como seu estatuto e pretensões.

    A teologia e a religião são temas recorrentes nas três críticas e especialmente nas  obras  da  década  de  90:  Sobre  o  fracasso  de  toda  tentativa  filosófica  na Teodiceia (1791), A religião nos limites da simples razão (1793), O fim de todas as coisas (1794), e O conflito das faculdades (1798). As Lições de Metafísica, Lições de Lógica e Lições sobre a doutrina filosófica da religião testemunham a presença do tema também no magistério kantiano. Kant encontra lugar para a fé, abordando inclusive conteúdos típicos da teologia confessional: a trindade, o pecado original, a graça, a encarnação, a expiação vicária e a eternidade. Mais importante que o interesse recorrente pela teologia e a religião, é a posição que elas ocupam no sistema kantiano. No prefácio da Crítica da Razão Pura, Kant esclarece  que  o  objetivo  central  do  projeto  crítico  é  estabelecer  os  limites  do  conhecimento como método para a afirmação da realidade e efetividade dos conteúdos da fé racional (KrV, B XXX).

    1. A escatologia como teologia fundamental

         Kant classifica a teologia de dois modos similares. Na sétima seção da Crítica  da  Razão  Pura  (1781),  intitulada  “Crítica  de  toda  a  teologia  fundada  em  princípios  especulativos  da  razão”,  Kant  distingue  a  teologia  em  theologia revelata e a theologia rationalis. A teologia revelada apela à fé numa tradição religiosa e, eventualmente, se apoia na autoridade de escritos sagrados. A teologia racional, por sua vez, concebe de dois modos o seu objeto: a teologia transcendental, através da razão pura, mediante conceitos transcendentais (ens originarium, ens realissimum, ens entium) e a teologia natural, mediante um conceito que deriva da natureza da nossa alma. Enquanto a teologia transcendental concebe Deus como causa do mundo, sem qualificar tal causa como necessária ou livre; a teologia natural define Deus como autor do mundo (KrV, A 631\B 659). A teologia natural deduz a existência e os atributos de Deus a partir da constituição, ordem e unidade do mundo. Há, pois, nesse mundo duas espécies de causalidade: a  natureza  e  a  liberdade.  A  teologia  natural  “ascende  deste  mundo  até  à  inteligência suprema como ao princípio de toda a ordem e perfeição, seja na natureza seja no domínio moral. No primeiro caso denomina-se teologia física, no último, teologia moral” (KrV, A 632\B 660). Na Lições  sobre  a  doutrina  filosófica  da religião, ministradas provavelmente no semestre de inverno de 1783/1784, Kant afirma que há dois tipos de teologia: a empírica e a racional. A teologia empírica só é possível através de uma revelação divina, pois Deus não pode ser objeto de uma experiência. A teologia racional pode ser: a) transcendental, na qual Deus é pensado como ens originarium [causa do mundo]; b)natural, na qual Deus é concebido  como  summa  intelligentia  [criador  livre  do  mundo]; e  c)moral,  na  qual Deus é representado como summum bonum [legislador do mundo em relação às leis morais] (V-Phil-Th, AA 28:1001-1002).

    A teologia revelada é absolutamente problemática. Kant a considera indiscernível.  “Se  Deus  falar  realmente  ao  homem,  este  nunca  consegue  saber  se  é  Deus  que  lhe  fala.  Com  efeito,  é  absolutamente  impossível  que,  por  meio  dos  sentidos, o homem tenha de apreender o infinito, distingui-lo dos seres sensíveis e reconhecê-lo em qualquer coisa” (SF, AA 07: 63)3. Ainda que a consideremos discernível, a autorevelação de Deus seria um fato sintético e a posteriori. A “revelação como experiência” tem validade particular, isto é, para aqueles a quem chegou. Ademais, é contingente, pois não implica que “o objeto crido tenha de ser assim e não de outro modo”. Não há um critério de verdade empírica, por isso “é  possível  haver  várias”  revelações  e  “sobre  doutrinas  de  fé  históricas  jamais  se pode evitar a disputa” (RGV, AA 06: 115). Kant ataca a fé feiticista – que inventa meios da graça como substitutivo para o empenho moral – considerando-a ilusão  religiosa  [Religionswahn].  Kant  nota  uma  “antinomia  da  razão  humana  consigo própria” [Antinomie der menschlichen Vernunft mit ihr selbst] no tocante à relação entre a fé racional pura e a fé histórica: a “fé religiosa pura” [reinen Religionsglauben] deve ser acrescentada por uma fé histórica ou deve a fé histórica transformar-se em “fé religiosa pura”? (RGV, AA 6:116). Kant vislumbra o fim da religião histórica pela gradual libertação da pura religião racional de todos os fundamentos empíricos de determinação e de todos os estatutos que reúnem provisoriamente os homens para o fomento do bem (RGV, AA 06: 121).

Kant erige a fé racional pura, cuja marca é o caráter apriorístico e universal, como  critério  que  distingue  a  verdadeira  da  falsa  religião.  O  conceito  de  “fé  racional pura” significa oposição à tese de que a irracionalidade é inerente à fé. Representa também contestação à noção, cara à escolástica, de que fé e razão, ainda que harmoniosas, sejam magnitudes distintas e independentes. Se a fé está radicada na razão, a razão não pode ignorá-la sem entrar em contradição consigo mesma. A fé histórica ou estatutária, inclusive a religião cristã, está em função da fé racional pura, entendida como fé moral (RGV, AA 6: 152). A fé eclesial estatutária se acrescenta à fé religiosa pura como veículo e meio de união pública dos homens para o fomento da última” (RGV, AA 6: 106). No ensaio Sobre  o  fracasso de toda tentativa filosófica na Teodiceia (1791), Kant afirma que Deus se torna intérprete de sua vontade manifesta na criação através de nossa própria razão. A razão invocada não é a teórica, mas a prática. A legislação moral oferece um sentido à letra de sua criação. A fé racional é autodisciplina e representa um princípio negativo no uso da faculdade de conhecer, “a compreensão dos limites necessários das nossas pretensões com respeito àquela sabedoria que para nós é demasiado alta” (MpVT, AA 08: 263). Kant encontra em Jó, que se manteve fiel apesar dos insondáveis desígnios de Deus, o exemplo mais claro de fé racional, pois  “ele  demonstra  que  não  funda  a  sua  moralidade  sobre  a  crença,  mas  que  funda  a  sua  crença  sobre  a  moralidade  [...]  não  funda  uma  religião  de  súplica,  mas uma religião de bons costumes” (MpVT, AA 08:267)4.

Uma teologia física corresponderia a uma teologia especulativa, para o que não  haveria  fundamento  em  Kant.  No  uso  meramente  especulativo  da  razão,  Deus se mantém como um simples ideal, um conceito que remata todo o conhecimento  humano.  A  realidade  desse  conceito  não  pode  ser  provada,  tampouco  refutada por via teorética. Kant admite que somente uma teologia moral poderia superar a problematicidade da teologia transcendental no âmbito teorético (KrV, A 641\B 669). Na Lições, a teodiceia é inserida numa teologia moral, elaborada a partir de um conceito mínimo e prático de Deus. Kant defende uma theologia ectypa por oposição a uma theologia archetypa. A theologia ectypa é o sistema de cognição sobre Deus a partir do que é encontrado na natureza humana. Embora possa afirmar-se como sistema, uma vez que os conteúdos oferecidos pela razão podem  ser  estruturados  numa  unidade,  trata-se  de  um  conhecimento  precário.  O interesse especulativo é pequeno em comparação com o prático. Ademais, a especulação sobre um objeto tão sublime pode induzir a erro. A rigor, a theologia archetypa, enquanto soma total de todas as possíveis cognições sobre Deus, não é possível para a razão humana, nem mesmo através de revelação (V-Phil-Th, AA 28: 995). A cognição da theologia ectypa tem interesse prático, isto é, não  nos  torna  mais  instruídos,  mas  melhores,  mais  honestos  e  mais  sábios.  A  existência do ser supremo, que pode e nos fará felizes, fortalece nossas disposições morais.

Tanto na Crítica da Razão Pura quanto na Lições sobre a doutrina filosófica da religião, Kant se define teísta. O ateu não admite nenhuma teologia; o deísta só reconhece a teologia transcendental e o teísta é aquele que adota a teologia natural e/ou a moral. O problema do mal só faz sentido à luz da premissa teológica da existência de Deus como criador sábio e bom. Para Kant, somente um teísta pode admitir, de alguma forma, que Deus seja um criador sábio e bom. Deus e a teologia são apresentados como decorrência necessária da moralidade (V-Phil-Th,  AA  28:  995).  A  teologia  moral,  embora  não  tenha  pretensão  teorética,  é  a  única que oferece um conceito determinado de Deus (V-Phil-Th, AA 28: 1073). A  conclusão  sobre  Deus  e  sua  relação  com  o  mundo  é  similar  as  de  Leibniz  e  Agostinho. Deus, ente originário que contém em si o fundamento da possibilidade de todas as coisas, produziu o mundo através do conhecimento e por meio de uma vontade livre (V-Phil-Th, AA 28: 1001). O mundo é o melhor dentre os mundos possíveis, pois “se fosse possível um mundo ainda melhor que aquele que Deus quis, então deveria também ser possível uma vontade ainda melhor que a divina” (V-Phil-Th, AA 28: 1097). O mundus optimus de Kant não é uma concessão à metafísica. A cisão entre ontologia e ética implica a desconexão entre  perfeição metafísica e a perfeição axiológica. Da perfeição metafísica não se pode inferir a suma bondade. As perfeições tornam-se boas na medida em que o homem se serve delas com a Gesinnung para realizar um fim compatível com a ideia de sumo bem (V-Met, AA 28: 211-212)5.

A teodiceia  que  emerge  das  Lições  sobre  a  doutrina  filosófica  da  religião refere-se a predicados morais de Deus, o ser que dá realidade objetiva aos deveres morais: santidade (Heiligkeit), bondade (Gütigkeit) e justiça (Gerechtigkeit). Tais atributos são dedutíveis da ideia de vontade divina, na medida em que coincidem com a representação moral de todo ser racional. Pela lei moral conhecemos a Deus como legislador santo, provedor bondoso e juiz justo (V-Phil-Th, AA 28: 1073). A teodiceia impõe-se como confutação à hipótese de uma contradição entre o curso da natureza e da moralidade.  

    1. A  primeira  objeção  é  contra   a  santidade  de  Deus.  Se  Deus  é  santo e odeia o mal (Böse), então de onde vem este mal, que é objeto de aversão para todo ser racional e fundamento de toda aversão intelectual? A segunda objeção é contra sua benevolência.  Se  Deus  é  benevolente  e  quer  que  o  ser  humano  seja  feliz, então de onde vem o mal físico (Uebel) no mundo, que é objeto de aversão para todos os que se encontram com ele e se constitui fundamento de aversão física? A terceira objeção é  contra  a  justiça  de  Deus.  Se  Deus  é  justo,  de  onde  vem  a  distribuição desigual do bem e do mal no mundo, a qual não se adequa, de fato, com a moralidade? (V-Phil-TH, AA 28: 1076). 

O  problema  sobre  a  origem  do  mal  moral  (Böse)  e  do  mal  físico  (Uebel) é  respondido  com  grande  acuidade  e  em  variadas  perspectivas  em  diversas  obras. As Lições sobre a doutrina filosófica da religião (1775/1776), Lições de antropologia (1775/1776), Ideia  de  uma  História  Universal  com  o  Propósito Cosmopolita  (1784),  Início  Conjectural  da  História  Humana (1786), As  anotações  nas  observações  sobre  o  sentimento  do  belo  e  do  sublime (1764) e A religião nos limites da simples razão (1793) testemunham a ampla e profunda abordagem sobre variadas e importantes perspectivas do problema da liberdade. No entanto, a teologia kantiana – assim como a teodiceia – encontra seu fundamento  numa  necessidade  moral.  A  terceira  objeção  –  contra  a  justiça  de  Deus  – trata de uma exigência intrínseca da lei moral: a realização do sumo bem (felicidade proporcional à moralidade). A melhor resposta no âmbito da teodiceia não satisfaz a necessidade moral. A lei exige que a questão encontre solução numa escatologia, do contrário é ameaçada de reductio ad absurdum. Se o sumo bem não é possível, então a lei moral que ordena sua promoção dirige-se a fins vazios e imaginários e deve, portanto, ser pensada como intrinsecamente falsa. A teoria da liberdade deteriorar-se-ia numa moral do escravo, manifestada por uma razão que  institui  regularmente  sua  própria  impotência.  A  deontologia  kantiana  seria  esvaziada teologicamente, pois o empenho moral resulta insuficiente para produzir o sumo bem prefigurado na lei. A atividade generativa da razão que constrói a lei moral como impossibilidade permanente e submete o homem a uma autossujeição inevitável deveria ser considerada uma ilusória e perigosa ficção. Se a lei moral for reduzida ao absurdo, a teologia é destituída de fundamento e uma teodiceia torna-se desnecessária.

A teologia fundamental, elaborada desde a racionalidade prático-teleológica, tem conteúdo escatológico e fundamento na necessidade moral. A denominação kantiana “teologia moral” pode induzir a equívoco. A rigor, a teologia moral clássica trata das condições de legitimidade, exequibilidade e imputabilidade das normas e princípios morais. Quando invocado no âmbito da teologia moral, Deus é o fundamento da veracidade da lei natural e o revelador da lei divina positiva.

            A moral cristã não dispensa a graça divina como condição de possibilidade para a  realização  moral.  A  autonomia  moral  kantiana,  por  sua  vez,  exclui  qualquer  dado extrínseco à vontade humana como arbitrário. As leis morais são assumidas como mandamentos divinos, se entendidas como leis essenciais de cada vontade livre em si. Kant afirma de modo contundente que a moral, enquanto fundamentada na liberdade e na lei, não necessita de Deus, nem de qualquer fim, pois a razão pura prática é suficiente para determinar a vontade (RGV, AA 6: 3-4). No entanto, admite que, sem uma representação do fim, não há nenhuma determinação da vontade. A pedra fundamental da teologia é o juízo teleológico-prático a  priori.  A  representação  teleológica  não  é  posta  como  fundamento  do  arbítrio  ou como condição prévia ao propósito, mas como consequência necessária das máximas adotadas em conformidade com a lei moral em ordem a um fim [finis in consequentiam veniens] (RGV, AA 6: 4). Embora o fim não seja fundamento (jamais poderia ser o motivo de uma ação conforme a lei), sua representação é condição de possibilidade para a determinação da vontade. Um arbítrio que não tenha uma representação teleológica “sabe porventura como, mas não para onde tem de agir, não pode bastar-se a si mesmo” (RGV, AA 6: 4)6. Trata-se de uma representação teleológica necessária, o “para onde” construído pela ação conforme o dever.

A  representação  teleológica,  exigida  como  condição  de  possibilidade  para  a determinação da vontade, é escatológica. Deus é apresentado como objeto da esperança,  pois  somente  uma  vontade  moralmente  perfeita  e  onipotente  pode  assegurar  o  sumo  bem  como  efeito  do  que  a  lei  impõe  como  dever.  A  lei  que  remete à moralidade tem de remeter, desinteressadamente e a partir de uma simples  razão  imparcial,  à  felicidade  adequada  àquela  moralidade.  A  lei  se  refere  diretamente à moralidade, que depende da liberdade humana; e indiretamente à máxima beatitude, que demanda a existência de Deus como “ser superior, moral, santíssimo  e  onipotente,  o  único  que  pode  unir  os  dois  elementos  desse  bem  supremo” (RGV, AA 6: 5). A legislação da razão pura conduz à pressuposição da existência de uma causa adequada ao efeito exigido pela moralidade, isto é, a postular a existência de Deus como necessariamente pertencente à possibilidade do sumo bem (KpV, A 223-224). Deus é, sob essa perspectiva, a “ideia de um objeto que contém em si a condição formal de todos os fins [...] o fim que contém a condição iniludível e, ao mesmo tempo, suficiente de todos os outros é o fim último” (RGV, 6: 5-6). Deus não é o motivo moral, mas causa da realidade objetiva do conceito de bem supremo (WDO, AA 8: 139). A ideia de Deus que na esfera teorética é meramente regulativa, na esfera prático-teleológica “não é vazia porque alivia a nossa natural necessidade de pensar um fim último qualquer que possa ser justificado pela razão para todo o nosso fazer e deixar tomado no seu todo, necessidade que seria, aliás, um obstáculo para a decisão moral” (RGV, AA 6: 5). Se é verdade que a afirmação prática desse fim não acrescenta nenhum dever,  é  certo,  porém,  que  a  moral  não  pode  ser  indiferente  “à  combinação  da  finalidade pela liberdade com a finalidade da natureza, combinação de que não podemos prescindir” (RGV, AA 6: 5).

A imortalidade da alma também é defendida em chave escatológica no cânone da Crítica da Razão Pura. É preciso admitir, como ideia da razão praticamente necessária, um “reino da graça, onde nos aguarda toda a felicidade, a menos que  nós  próprios  nos  limitemos  na  nossa  parte  de  felicidade,  ao  tornarmo-nos  indignos de ser felizes” (KrV, A 812/B 840). A argumentação kantiana se apoia ora na inadequação entre “os excelentes dons da natureza humana e a brevidade da vida” (KrV, A 827/ B 855), ora na necessidade de “unidade dos fins sob a lei moral”, para que os justos possam ter a proporção de felicidade compatível à dignidade de sua moralidade (KrV, A 828/ B 856). “Deus e uma vida futura são,  portanto,  segundo  os  princípios  da  razão  pura,  pressupostos  inseparáveis  da obrigação que nos impõe essa mesma razão” (KrV, A 811/ B 839). O vacilo sobre essas matérias de fé derruba os princípios morais e nos tornaria dignos de desprezo (KrV, A 828/ B 856).

Na carta de Kant a Stäudlin, de 4 de maio de 1793, Kant associa a teologia e a religião a seu programa filosófico, como resposta à questão da esperança. A escatologia é a teologia fundamental, base para toda reflexão teológica possível. A relação entre a razão pura prática e o cristianismo é apresentada como parte do problema crítico-transcendental.

  1. O meu plano, já feito há algum tempo, para o tratamento do campo da filosofia pura que me compete baseava-se na reso-lução das três tarefas: 1) O que posso eu saber? (metafísica) 2)  O  que  devo  fazer?  (moralidade)  3)  O  que  posso  esperar?  (religião); que deveria ser seguido finalmente pelo quarto: O que é o homem? (antropologia; sobre a qual já ensinei anual-mente  na  universidade  por  mais  de  20  anos).  Com  o  escrito  seguinte, A religião nos limites da simples razão, tentei com-pletar  a  terceira  parte  do  meu  plano.  Neste  trabalho  procedi  conscientemente  e  com  genuíno  respeito  pela  religião  cristã,  mas também pelo princípio de uma adequada franqueza, nada escondendo, antes apresentando abertamente como creio que seja possível a unificação do cristianismo com a mais pura razão prática. (Br AA 11: 429).
    A lei moral conduz à ideia do sumo bem. No entanto, a teologia não é redutível à moralidade, pois o conceito de Deus como condição de possibilidade do bem supremo vai além do conceito de dever. “Se a proposição ‘Há um Deus’, por  conseguinte  ‘Há  um  bem  supremo  no  mundo’,  tiver  (como  proposição  de  fé) de provir somente da moral, é uma proposição sintética a priori” (RGV, 6: 6). A proposição “faz do sumo bem possível no mundo o teu fim último” é uma proposição sintética a priori, que é introduzida pela própria lei moral e pela qual, no entanto, a razão prática se estende para lá da lei. O conceito de dever não pressupõe nenhuma matéria do arbítrio, mas somente leis formais do próprio arbítrio. A  proposição  “há  um  Deus”,  logo    um  bem  supremo  no  mundo”  acrescenta  um efeito que não está contido na lei moral. Embora a teologia se fundamente na moral, ela não pode desenvolver-se analiticamente a partir da moral. O imperativo categórico exige a aceitação da existência de Deus, o que vai efetivamente além  da  admissão  da  mera  possibilidade,  prevista  na  dialética  transcendental.  Dessa forma, a moral conduz pelo conceito de sumo bem à religião e à teologia (KpV, A 233).
 

2. Da fé racional à fé reflexionante 

No  ensaio  Que  significa  orientar-se  no  pensamento?, Kant  fundamenta  a  legitimidade do pensamento sobre matérias incognoscíveis. Orientar-se no pensamento significa determinar-se no assentimento segundo um princípio subjetivo da mesma razão, em virtude da insuficiência dos princípios objetivos da razão.  Trata-se  do  alargamento  do  puro  conceito  do  entendimento  sob  regras  do  pensamento  em  geral.  Neste  caso,  dá-se  uma  omissão  da  ação  concreta  do  entendimento e até mesmo da pura intuição sensível. Kant ilustra o pensamento como um orientar-se “às escuras num quarto que me é conhecido, quando consigo agarrar um único objeto, cujo lugar tenho na memória” (WDO, AA 8: 135)7. Nesse caso, faço desse objeto a referência a partir da qual aplico meu senso de direção  para  determinar  a  posição  das  outras  coisas.  A  orientação  então  só  é  possível “segundo um princípio de diferenciação subjetiva [nach einem subjec-tiven Unterscheidungsgrunde]”. Enquanto o conhecimento implica a aplicação de  um  conceito  a  uma  intuição  sensível  (princípio  objetivo  de  diferenciação),  o  pensamento  implica  objetos  que  não  são  passíveis  de  uma  intuição.  Então  o  princípio de diferenciação subjetiva que lhe resta é o sentimento de necessidade [Bedürfnis] da própria razão. A necessidade, embora chamada de subjetiva, se refere à universalidade da espécie e não pode ser aplicada apenas de modo casuístico a um determinado contexto pessoal ou sociocultural. A necessidade da ligação sistemática entre a natureza e a liberdade deve representar a possibilidade lógica e transcendental de realização da liberdade na natureza.


Kant pretende depurar o exercício da faculdade do pensamento para evitar que sirva ao entusiasmo fantasista, ao pretenso e misterioso sentido da verdade que conduza ao total destronamento da razão devido a seus próprios ataques sofísticos. Somente a “autêntica e pura razão humana” (bloß die eigentliche reine) serve como princípio de diferenciação subjetiva, somente ela é referência e parâmetro para o exercício do pensamento. A revelação e a tradição religiosas obtêm sua legitimidade na medida em que estão em consonância com a razão (WDO, AA 8: 134). A atividade designada pensamento distingue-se da especulação arbitrária  pelo  fato  de  resultar  de  uma  necessidade  de  juízo  inerente  à  razão.  A  mera especulação, por sua vez, caracteriza-se pela arbitrariedade da razão sobre o querer julgar sobre algo. A atividade do pensamento não visa, portanto, ao suprassensível em geral e não se estende até onde a razão não discerne necessidade alguma  de  ampliar-se  ou  de  assumir  algo  como  existente.  O  pensamento  deve atuar quando somos compelidos a julgar e realizamos o assentimento em virtude de motivos subjetivos do uso da razão, pois nos faltam os objetivos (WDO, AA 8: 139). O conceito objeto do pensamento deve ser isento de contradições e  útil  para  o  uso  empírico  de  nossa  razão.  Se  o  objeto  não  atende  a  esses  dois  requisitos, não é pensável. Isto é, em vez de pensar cederíamos ao devaneio no incomensurável e obscuro espaço do suprassensível (WDO, AA 8: 137). 

A necessidade da razão pode considerar-se de duas maneiras: no uso teórico e no uso prático. No uso teórico, o conceito de Deus é um objeto necessário da razão. A razão tem a necessidade de pôr o conceito do ilimitado como fundamento do limitado e sem a admissão de um criador inteligente a razão se encontra em dificuldades para aduzir um fundamento inteligente da ordem, beleza e harmonia do universo. Kant considera a necessidade no uso prático muito mais importante, porque é incondicionada e somos constrangidos a pressupor a existência de Deus. A lei moral demanda a conciliação da liberdade com a natureza. A licença semântica para o suprassensível encontra seu fundamento na Crítica da Razão Pura, cuja contribuição positiva é, segundo Kant, a permissão para que a filosofia prática se estenda “para além dos limites da sensibilidade”, sem que, por isso, a razão entre em contradição consigo mesma (KrV, B XXV).

Kant rejeita as expressões “pretensão da sã razão”, “discernimento racional” e “juízo de inspiração racional” como inapropriadas para definir a atividade do pensamento. Para Kant, nenhuma designação é mais conveniente que “fé racional”. Qualquer fé, mesmo a histórica (expressa numa instituição religiosa), deve ser racional, pois a razão é o critério da verdade. No entanto, toda a fé é, pois, um assentimento subjetivamente suficiente, mas no plano objetivo, com consciência de sua insuficiência; portanto, contrapõe-se ao saber. A fé racional nunca será um saber, pois seus fundamentos não são objetivamente válidos (WDO, AA 8: 140). O pensamento não dá azo ao entusiasmo delirante da razão dogmática, que ultrapassa os limites da experiência e afirma conhecer. Deus é assumido como um postulado. Na ordem teórica, o postulado é uma proposição indemonstrável que oferece uma regra para a construção de um objeto. Na ordem prática, o postulado é suposto a partir da lei moral, uma decorrência indemonstrável da ética. Os postulados têm a significação de evidências e não de imperativos morais. Porque está submetido à lei moral, o homem se vê coagido à crença na imortalidade da alma e na existência de Deus.

Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que “as coisas conhecíveis são de três espécies: coisas da opinião [opinabile], fatos [scibile] e coisas de fé [mere credibile]” (KU, AA 5: 467)8. As coisas de opinião são aquelas de modo algum cognoscível, qualquer pretensão de conhecimento a respeito delas é mera fantasia. Os fatos são os objetos para os conceitos, cuja realidade objetiva pode ser demonstrada. As coisas de fé são os objetos que têm de ser pensados a priori, em relação ao uso conforme ao dever da razão pura prática, seja como consequências, seja como fundamentos, mas que são transcendentes para o uso teórico da mesma. A liberdade “é a única dentre as ideias da razão para cujo objeto é um fato <Tatsache> e que tem de ser contada entre os scibilia” (KU, AA 5: 468). O bem supremo deve ser considerado coisa de fé, ancorada na liberdade como fato que exige a realização de um fim.

Desta espécie é o bem supremo no mundo, atuando mediante a  liberdade,  cujo  conceito  não  nos  pode  ser  demonstrado  de  modo suficiente, segundo a sua realidade objetiva, em nenhuma experiência possível, por conseguinte no uso racional teórico. Porém o uso daquele conceito é-nos ordenado no sentido da melhor realização possível daquele fim, mediante a razão prática  pura  e,  em  consequência,  tem  de  ser  admitido  como  possível. Este efeito que nos é ordenado em conjunto com as únicas condições da sua possibilidade por nós pensáveis, nomeadamente a da existência de um Deus e da imortalidade da alma, são coisas de fé (res fidei) e na verdade as únicas dentre todos os objetos que assim podem ser chamadas. (KU, 5: 469).

A  incredulidade  racional,  entendida  como  a  máxima  indiferença  da  razão  em relação à sua própria necessidade, ou seja, a renúncia à fé racional, priva as leis morais de toda a força de móbil e toda a autoridade, o que redunda no não reconhecimento de nenhum dever. A experiência moral não nos permite acesso conceitual a Deus, mas a tensão teleológica demanda algum tipo de pensamento representacional animado pela fé racional que impulsione o agente moral na direção do Deus vivo. A fé racional, base de qualquer outra fé e até de toda revelação, é a bússola ou o poste indicador que orienta o pensador especulativo em suas incursões ao suprassensível tanto do ponto de vista teórico quanto prático (WDO, AA 8: 142).

Em várias obras, especialmente em A religião nos limites da simples razão, Kant exercita o pensamento sobre matérias transcendentes à razão teórica: Deus, a liberdade, a imortalidade, o mal, a graça, a salvação. Kant chama de fé reflexionante o discurso prático-teleológico constituído de ideias hiperbólicas e feito por necessidade racional. Trata-se ideias moralmente transcendentes, isto é, que extrapolam o conteúdo deduzido a priori e qualificável como “ideia religiosa praticamente necessária” [„praktisch nothwendige Religionsidee“] (RGV AA 6: 145). São ideias elaboradas pela razão para suprir a incapacidade de satisfazer a sua necessidade moral, mas sem delas se apropriar como conhecimento ou postulado necessário. Pode-se reconhecer, portanto, distintas abordagens discursivas com diferentes condições de legitimidade:  conhecimento (razão teórica), fé racional (razão prática) e pensamento/fé reflexionante (razão teleológica).

A  razão,  na  consciência  da  sua  incapacidade  de  satisfazer  a  sua  necessidade  moral,  estende-se  até  ideias  hiperbólicas [überschwenglichen  Ideen]  que  poderiam  suprir  tal  deficiência,  mas  sem  delas  se  apropriar  como  de  uma  posse  ampliada. Não contesta a possibilidade ou a realidade efetiva dos  objetos  dessas  ideias,  mas  não  pode  acolhê-las  nas  suas  máximas  de  pensar  e  de  agir.  Espera  até  que,  se  no  campo  insondável  do  sobrenatural  existe  ainda  algo  mais  do  que  o  que ela para si consegue tornar compreensível, algo que todavia seria necessário para suplemento da sua impotência moral, este, embora incógnito, virá em ajuda da sua boa vontade, com uma fé que se poderia denominar (acerca da sua possibilidade) fé reflexionante, já que a fé dogmática, que se proclama como um saber, lhe parece dissimulada ou temerária; pois arrojar com as dificuldades contra o que por si mesmo (praticamente) se mantém firme, quando elas concernem a questões transcendentes, é só um afazer acidental (parergon). (RGV, AA 6: 52).

A  atenção  a  essa  diferença  de  perspectiva  discursiva,  assim  como  a  seus  distintos estatutos, evitaria os caminhos sem saída de uma interpretação monolítica da razão kantiana. Grande parte das polêmicas, enigmas e contradições em torno das doutrinas expostas em A religião nos limites da simples razão deve-se à insistência em interpretar os textos sobre temas teológicos e religiosos à luz das condições de legitimidade da razão teórica. Na verdade, não conseguiríamos reduzir a razão pluridimensional a um único estatuto procedimental. Por exemplo, o conceito de filosofia transcendental, apresentado no prefácio à segunda edição da primeira crítica, é tão estreito que não comporta os princípios e conceitos fundamentais da moralidade. No âmbito da Crítica da Razão Pura, o componente empírico da moralidade é considerado bastardo e jamais assimilado pela filosofia transcendental. É esse o sentido da afirmação de que a questão da liberdade também diz respeito à psicologia, embora deva ser resolvida pela filosofia transcendental (KrV, A 15/B 29. A 535/B 563). Somente no âmbito da racionalidade prática é possível uma espécie de sensação (ArtvonEmpfindung) produzida unicamente pela legislação da razão prática, o sentimento de respeito pela epifania da lei moral (KpV A 56). A razão teórica, prática, estética e teleológica possuem princípios diversos e condições de legitimidade diferentes.

Considerações Finais

A preocupação teológica sempre esteve no cerne do objetivo kantiano desde o início do projeto crítico. É errôneo considerar que Kant seja ateu, agnóstico ou deísta com base na recepção de seu sistema ou em presumidas consequências de sua doutrina sobre a cultura. Kant definiu-se como teísta, no sentido em que a experiência moral envolve a relação com um Deus vivo. Privar a ação moral da representação teleológica necessária à representação da vontade conduz a frustração do fim preconizado na lei. A teologia que emerge do fato moral pode ser entendida como uma teleologia da liberdade, tendo, portanto, caráter eminentemente moral.

Embora a teologia se fundamente no fato moral, ela não é redutível à moralidade.  Antes,  a  teologia  fundamental  de  Kant  é  radicada  num  juízo  teleológico-prático a priori e seu conteúdo é escatológico. A escatologia serve como o núcleo  de  irradiação  do  pensamento  teológico,  que  mantém  como  critério  imprescindível  a  fé  racional.  A  teologia  parte  dos  conteúdos  da  fé  racional  para  projetar  uma  imagem  moral  do  mundo  pelo  pensamento.  O  pensar  é  uma  atividade consciente de sua insuficiência objetiva, mas realizada por necessidade [Bedürfnis] racional. Isso justifica o fato de Kant ter abordado temas peculiares à teologia, embora não sejam passíveis de conhecimento. A teologia crítica tem estatuto no sistema kantiano, não se trata de uma reflexão ocasional e espúria. Pensamento e conhecimento representam instâncias que não se completam, pois representam perspectivas distintas da racionalidade, tampouco se contradizem; antes, complementam-se sistematicamente. 

Referências

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HENRICH, D. The moral image of the world. In: ______. Aesthtic judgment and the  moral  image  of  the  world.  Standford:  Standford  University  Press,  1992. pp. 3-28.

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KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos San-tos  e  Alexandre  Fradique  Morujão.  Lisboa:  Fundação  Calouste  Gul-benkian, 2001.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Gen e Forense Universitária, 2012.KANT,  Immanuel.  Lectures  on  Metaphysics.  Translated  and  edited  by  Karl  Ameriks and Steve Naragon. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

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KANT, Immanuel. Que significa orientar-se no pensamento? Tradução de Artur Morão. Covilhã: LusoSofia: Press, 2008.

KANT, Immanuel. A Religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Edições 70, Lisboa, 2008.

KANT, Sobre o fracasso de toda tentativa filosófica na teodiceia. Tradução e notas de Joel Thiago Klein. In: Studia  Kantiana.  19  (dez.  2015):  pp.  153-176.

PALMQUIST, Stephen. Kant’s Critical Religion. Aldershot, UK: Ashgate Pub-lishing, 2000.

PRAUSS,  Gerold.  Kant  und  das  Problem  der  Dinge  an  sich.  Bonn:  Bouvier  Verlag, 1989.

WOOD, Allen. Kant ́s Deism. In: ROSSI, Philip. Kant’s Philosophy of Religion reconsidered.  Bloomington: Indiana University Press, 1991, pp. 1-21.

Nota 1:

1.As obras de Kant serão citadas segundo as normas da Akademie-Ausgabe, seguindo o que foiestabelecido pela Sociedade Kant Brasileira, disponível em Normas para citações : Sociedade Kant Brasileira.A Crítica da Razão Pura será citada segundo as edições A (1781) e B (1789). A Crítica da RazãoPrática será citada de acordo com o texto original da primeira edição (1788). A citação será feitana seguinte ordem: abreviatura da obra, número do tomo e número da página. As traduções utili-zadas estão referidas na bibliografia, assim como na primeira citação da obra, nas notas do texto.As traduções das demais obras são de minha responsabilidade As siglas usadas no artigo são asseguintes: Br – Correspondências, KpV - Crítica da Razão Prática, KrV - Crítica da Razão Pura,KU - Crítica da Faculdade do Juízo, MpVT - Sobre o fracasso de toda tentativa filosófica na teodi-ceia, RGV - Religião nos limites da simples razão,SF - O Conflito das faculdades, V-Met - Liçõesde Metafísica, V-Phil-Th - Lições sobre a doutrina filosófica da religião e WDO- Que significaorientar-se no pensamento? 

Nota 5:

5.      O  termo  Gesinnung é  traduzido  por  Artur  Morão,  cuja  tradução  da  Die  Religion  innerhalb  der  Grenzen  der  bloßen  Vernunft  utilizamos  nesta  pesquisa,  como  “disposição”.  Também  Mary  Gregor  traduz  por  “disposition”  em  sua  tradução  da  Doutrina  da  Virtude. José Lamego e Alain Renaut traduzem Gesinnung como intenção. Guido de Almeida traduz Gesinnung como “atitude” em sua tradução da Fundamentação da Metafísica dos Costumes.Os dicionários apresentam como alternativas  de  tradução  os  termos  “convicção”,  “mentalidade”,  “opinião”  e  “modo  de  pensar”.  Parece-me que as alternativas não esgotam o significado de Gesinnung na filosofia prática kantia-na, especialmente no âmbito da Religion, onde o termo é utilizado no contexto do mal radical (que remete à doutrina do pecado original e suas consequências para a natureza do arbítrio humano). Enquanto “disposição” remete à noção de hábito (Gewohnheit) adquirido ou exercitado como se fosse  uma  aptidão  natural,  disposição  biológica  da  espécie,  o  que  poderia  representar  uma  base  empírica nitidamente rechaçada por Kant para a caracterização da Gesinnung; “intenção” ou “pos-tura” não parece denotar o caráter permanente da postura prática do sujeito. Por outro lado, os ter-mos “convicção”, “mentalidade” e opinião” podem remeter a um processo intelectual antecedente à consolidação da Gesinnung, o que não cabe no voluntarismo kantiano, sobretudo na aplicação à doutrina do mal radical, onde a Gesinnung é constituída por ato realizado fora do tempo, antes de qualquer uso da liberdade na experiência e caracterizada como natureza do arbítrio (RGV, AA 6: 22). Visando conservar a riqueza semântica do termo, manteremos no artigo o termo alemão Gesinnung.

 Link do Artigo completo:

https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/53427



 

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