A teologia crítica de Kant: da fé racional à fé reflexionante - Fco das Chagas de Oliveira Freira
A teologia crítica de Kant: da fé racional à fé reflexionante
*Franscisco das Chagas de Oliveira Freire
(Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra. https://orcid.org 0000-0002-8000-5447. Contato: freirefranz@gmail.com).
Resumo
O rigor com que Kant nega a possibilidade de demonstração teórica da existência de Deus, aliada a uma hermenêutica que focaliza o sistema kantiano a partir da teoria do conhecimento, induziu numerosos intérpretes a considerar a expressão “teologia kantiana” como um oximoro. Intérpretes prestigiados o veem como agnóstico ou, na melhor das hipóteses, deísta. Em todo caso, Kant não admitiria um fundamento racional para a religião e a teologia. O presente artigo tem a intenção de examinar os princípios e condições de legitimidade que viabilizam a teologia kantiana. A teologia encontra fundamento numa necessidade subjetiva da razão. Trata-se de uma necessidade moral de representação teleológica, sem a qual a vontade não pode ser determinada. Embora esteja fundamentada na moral, a teologia se constitui em uma disciplina autônoma. A fé está enraizada na racionalidade e não pode ser ignorada sem que a razão entre em contradição consigo mesma. A fé racional pura deve ser a bússola e o parâmetro seguro para a fé reflexionante, ou seja, para o pensamento sobre o incomensurável e obscuro espaço do suprassensível. Kant legitima o pensamento – por oposição a conhecimento – como alargamento do puro conceito do entendimento,
Palavras-chave:Teologia.
Moral. Fé racional. Fé reflexionante. Pensamento.
O rigor com que Kant nega a possibilidade de demonstração teórica da existência de Deus, aliada a uma hermenêutica que focaliza o sistema kantiano a partir da teoria do conhecimento, induz os intérpretes a considerar a expressão “teologia kantiana” como um oximoro (PALMQUIST, 2008, p.17). Intérpretes prestigiados o veem como agnóstico ou, na melhor das hipóteses, deísta (WOOD, 1991). Gerold Prauss (1989, p. 39) e Henry Allison (2004, p. 16-19), defenderam que, ao invés de pensar dois mundos ontologicamente distintos – o mundo sensível e o mundo inteligível, no qual Deus é representado como criador e legislador moral do mundo – Kant distinguiu duas perspectivas hermenêuticas – a sensível e a inteligível – num mesmo mundo. Esses autores rechaçam a concepção que reifica a coisa em si mesma e o mundo numênico. Antes da “coisa em si” ser a condição do fenômeno, o fenômeno é a condição da “coisa em si”. Em todo caso, a filosofia de Kant não admitiria um fundamento racional para a religião e a teologia.
O presente artigo tem a intenção de examinar os princípios e condições de legitimidade que viabilizam a teologia em Kant. Constata-se que somente pela racionalidade prática, estética e teleológica Deus adquire estatuto de realidade efetiva e a teologia, viabilidade. A filosofia crítico-transcendental encerra uma profunda transformação no conceito de racionalidade. Institui-se a racionalidade complexa e procedural como crítica à noção tradicional – eminentemente substancial – de racionalidade. A razão kantiana é pluridimensional – teórica, prática, estética e teleológica – e apresenta princípios diversos e condições de legitimidade diferentes para cada dimensão discursiva. Importa, pois, descrever o modo como a teologia crítica está radicada na racionalidade, assim como seu estatuto e pretensões.
A teologia e a religião são temas recorrentes nas três críticas e especialmente nas obras da década de 90: Sobre o fracasso de toda tentativa filosófica na Teodiceia (1791), A religião nos limites da simples razão (1793), O fim de todas as coisas (1794), e O conflito das faculdades (1798). As Lições de Metafísica, Lições de Lógica e Lições sobre a doutrina filosófica da religião testemunham a presença do tema também no magistério kantiano. Kant encontra lugar para a fé, abordando inclusive conteúdos típicos da teologia confessional: a trindade, o pecado original, a graça, a encarnação, a expiação vicária e a eternidade. Mais importante que o interesse recorrente pela teologia e a religião, é a posição que elas ocupam no sistema kantiano. No prefácio da Crítica da Razão Pura, Kant esclarece que o objetivo central do projeto crítico é estabelecer os limites do conhecimento como método para a afirmação da realidade e efetividade dos conteúdos da fé racional (KrV, B XXX).
1. A escatologia como teologia fundamental
Kant classifica a teologia de dois modos similares. Na sétima seção da
Crítica da Razão
Pura (1781), intitulada
“Crítica de toda a teologia
fundada em princípios
especulativos da razão”,
Kant distingue a teologia em
theologia revelata e a theologia rationalis. A teologia revelada apela à
fé numa tradição religiosa e, eventualmente, se apoia na autoridade de escritos
sagrados. A teologia racional, por sua vez, concebe de dois modos o seu objeto:
a teologia transcendental, através da razão pura, mediante conceitos
transcendentais (ens originarium, ens realissimum, ens entium) e a teologia
natural, mediante um conceito que deriva da natureza da nossa alma. Enquanto a
teologia transcendental concebe Deus como causa do mundo, sem qualificar tal
causa como necessária ou livre; a teologia natural define Deus como autor do
mundo (KrV, A 631\B 659). A teologia natural deduz a existência e os atributos
de Deus a partir da constituição, ordem e unidade do mundo. Há, pois, nesse
mundo duas espécies de causalidade: a
natureza e a
liberdade. A teologia
natural “ascende deste
mundo até à
inteligência suprema como ao princípio de toda a ordem e perfeição, seja
na natureza seja no domínio moral. No primeiro caso denomina-se teologia
física, no último, teologia moral” (KrV, A 632\B 660). Na Lições sobre
a doutrina filosófica
da religião, ministradas provavelmente no semestre de inverno de
1783/1784, Kant afirma que há dois tipos de teologia: a empírica e a racional.
A teologia empírica só é possível através de uma revelação divina, pois Deus
não pode ser objeto de uma experiência. A teologia racional pode ser: a)
transcendental, na qual Deus é pensado como ens originarium [causa do mundo];
b)natural, na qual Deus é concebido
como summa intelligentia
[criador livre do
mundo]; e c)moral, na
qual Deus é representado como summum bonum [legislador do mundo em
relação às leis morais] (V-Phil-Th, AA 28:1001-1002).
A teologia revelada é absolutamente problemática. Kant a considera indiscernível. “Se Deus falar realmente ao homem, este nunca consegue saber se é Deus que lhe fala. Com efeito, é absolutamente impossível que, por meio dos sentidos, o homem tenha de apreender o infinito, distingui-lo dos seres sensíveis e reconhecê-lo em qualquer coisa” (SF, AA 07: 63)3. Ainda que a consideremos discernível, a autorevelação de Deus seria um fato sintético e a posteriori. A “revelação como experiência” tem validade particular, isto é, para aqueles a quem chegou. Ademais, é contingente, pois não implica que “o objeto crido tenha de ser assim e não de outro modo”. Não há um critério de verdade empírica, por isso “é possível haver várias” revelações e “sobre doutrinas de fé históricas jamais se pode evitar a disputa” (RGV, AA 06: 115). Kant ataca a fé feiticista – que inventa meios da graça como substitutivo para o empenho moral – considerando-a ilusão religiosa [Religionswahn]. Kant nota uma “antinomia da razão humana consigo própria” [Antinomie der menschlichen Vernunft mit ihr selbst] no tocante à relação entre a fé racional pura e a fé histórica: a “fé religiosa pura” [reinen Religionsglauben] deve ser acrescentada por uma fé histórica ou deve a fé histórica transformar-se em “fé religiosa pura”? (RGV, AA 6:116). Kant vislumbra o fim da religião histórica pela gradual libertação da pura religião racional de todos os fundamentos empíricos de determinação e de todos os estatutos que reúnem provisoriamente os homens para o fomento do bem (RGV, AA 06: 121).
Kant erige a fé racional pura, cuja marca é o
caráter apriorístico e universal, como
critério que distingue
a verdadeira da
falsa religião. O
conceito de “fé
racional pura” significa oposição à tese de que a irracionalidade é
inerente à fé. Representa também contestação à noção, cara à escolástica, de
que fé e razão, ainda que harmoniosas, sejam magnitudes distintas e
independentes. Se a fé está radicada na razão, a razão não pode ignorá-la sem
entrar em contradição consigo mesma. A fé histórica ou estatutária, inclusive a
religião cristã, está em função da fé racional pura, entendida como fé moral
(RGV, AA 6: 152). A fé eclesial estatutária se acrescenta à fé religiosa pura
como veículo e meio de união pública dos homens para o fomento da última” (RGV,
AA 6: 106). No ensaio Sobre o fracasso de toda tentativa filosófica na
Teodiceia (1791), Kant afirma que Deus se torna intérprete de sua vontade
manifesta na criação através de nossa própria razão. A razão invocada não é a
teórica, mas a prática. A legislação moral oferece um sentido à letra de sua
criação. A fé racional é autodisciplina e representa um princípio negativo no
uso da faculdade de conhecer, “a compreensão dos limites necessários das nossas
pretensões com respeito àquela sabedoria que para nós é demasiado alta” (MpVT,
AA 08: 263). Kant encontra em Jó, que se manteve fiel apesar dos insondáveis
desígnios de Deus, o exemplo mais claro de fé racional, pois “ele
demonstra que não
funda a sua
moralidade sobre a
crença, mas que
funda a sua
crença sobre a
moralidade [...] não
funda uma religião
de súplica, mas uma religião de bons costumes” (MpVT, AA
08:267)4.
Uma teologia física corresponderia a uma
teologia especulativa, para o que não
haveria fundamento em
Kant. No uso
meramente especulativo da
razão, Deus se mantém como um
simples ideal, um conceito que remata todo o conhecimento humano.
A realidade desse
conceito não pode
ser provada, tampouco
refutada por via teorética. Kant admite que somente uma teologia moral
poderia superar a problematicidade da teologia transcendental no âmbito
teorético (KrV, A 641\B 669). Na Lições, a teodiceia é inserida numa teologia
moral, elaborada a partir de um conceito mínimo e prático de Deus. Kant defende
uma theologia ectypa por oposição a uma theologia archetypa. A theologia ectypa
é o sistema de cognição sobre Deus a partir do que é encontrado na natureza
humana. Embora possa afirmar-se como sistema, uma vez que os conteúdos
oferecidos pela razão podem ser estruturados
numa unidade, trata-se
de um conhecimento
precário. O interesse
especulativo é pequeno em comparação com o prático. Ademais, a especulação
sobre um objeto tão sublime pode induzir a erro. A rigor, a theologia
archetypa, enquanto soma total de todas as possíveis cognições sobre Deus, não
é possível para a razão humana, nem mesmo através de revelação (V-Phil-Th, AA
28: 995). A cognição da theologia ectypa tem interesse prático, isto é, não nos
torna mais instruídos,
mas melhores, mais
honestos e mais
sábios. A existência do ser supremo, que pode e nos
fará felizes, fortalece nossas disposições morais.
Tanto na Crítica da Razão Pura quanto na Lições sobre a doutrina filosófica da religião, Kant se define teísta. O ateu não admite nenhuma teologia; o deísta só reconhece a teologia transcendental e o teísta é aquele que adota a teologia natural e/ou a moral. O problema do mal só faz sentido à luz da premissa teológica da existência de Deus como criador sábio e bom. Para Kant, somente um teísta pode admitir, de alguma forma, que Deus seja um criador sábio e bom. Deus e a teologia são apresentados como decorrência necessária da moralidade (V-Phil-Th, AA 28: 995). A teologia moral, embora não tenha pretensão teorética, é a única que oferece um conceito determinado de Deus (V-Phil-Th, AA 28: 1073). A conclusão sobre Deus e sua relação com o mundo é similar as de Leibniz e Agostinho. Deus, ente originário que contém em si o fundamento da possibilidade de todas as coisas, produziu o mundo através do conhecimento e por meio de uma vontade livre (V-Phil-Th, AA 28: 1001). O mundo é o melhor dentre os mundos possíveis, pois “se fosse possível um mundo ainda melhor que aquele que Deus quis, então deveria também ser possível uma vontade ainda melhor que a divina” (V-Phil-Th, AA 28: 1097). O mundus optimus de Kant não é uma concessão à metafísica. A cisão entre ontologia e ética implica a desconexão entre perfeição metafísica e a perfeição axiológica. Da perfeição metafísica não se pode inferir a suma bondade. As perfeições tornam-se boas na medida em que o homem se serve delas com a Gesinnung para realizar um fim compatível com a ideia de sumo bem (V-Met, AA 28: 211-212)5.
A teodiceia que emerge das Lições sobre a doutrina filosófica da religião refere-se a predicados morais de Deus, o ser que dá realidade objetiva aos deveres morais: santidade (Heiligkeit), bondade (Gütigkeit) e justiça (Gerechtigkeit). Tais atributos são dedutíveis da ideia de vontade divina, na medida em que coincidem com a representação moral de todo ser racional. Pela lei moral conhecemos a Deus como legislador santo, provedor bondoso e juiz justo (V-Phil-Th, AA 28: 1073). A teodiceia impõe-se como confutação à hipótese de uma contradição entre o curso da natureza e da moralidade.
- A primeira objeção é contra a santidade de Deus. Se Deus é santo e odeia o mal (Böse), então de onde vem este mal, que é objeto de aversão para todo ser racional e fundamento de toda aversão intelectual? A segunda objeção é contra sua benevolência. Se Deus é benevolente e quer que o ser humano seja feliz, então de onde vem o mal físico (Uebel) no mundo, que é objeto de aversão para todos os que se encontram com ele e se constitui fundamento de aversão física? A terceira objeção é contra a justiça de Deus. Se Deus é justo, de onde vem a distribuição desigual do bem e do mal no mundo, a qual não se adequa, de fato, com a moralidade? (V-Phil-TH, AA 28: 1076).
O problema sobre a origem do mal moral (Böse) e do mal físico (Uebel) é respondido com grande acuidade e em variadas perspectivas em diversas obras. As Lições sobre a doutrina filosófica da religião (1775/1776), Lições de antropologia (1775/1776), Ideia de uma História Universal com o Propósito Cosmopolita (1784), Início Conjectural da História Humana (1786), As anotações nas observações sobre o sentimento do belo e do sublime (1764) e A religião nos limites da simples razão (1793) testemunham a ampla e profunda abordagem sobre variadas e importantes perspectivas do problema da liberdade. No entanto, a teologia kantiana – assim como a teodiceia – encontra seu fundamento numa necessidade moral. A terceira objeção – contra a justiça de Deus – trata de uma exigência intrínseca da lei moral: a realização do sumo bem (felicidade proporcional à moralidade). A melhor resposta no âmbito da teodiceia não satisfaz a necessidade moral. A lei exige que a questão encontre solução numa escatologia, do contrário é ameaçada de reductio ad absurdum. Se o sumo bem não é possível, então a lei moral que ordena sua promoção dirige-se a fins vazios e imaginários e deve, portanto, ser pensada como intrinsecamente falsa. A teoria da liberdade deteriorar-se-ia numa moral do escravo, manifestada por uma razão que institui regularmente sua própria impotência. A deontologia kantiana seria esvaziada teologicamente, pois o empenho moral resulta insuficiente para produzir o sumo bem prefigurado na lei. A atividade generativa da razão que constrói a lei moral como impossibilidade permanente e submete o homem a uma autossujeição inevitável deveria ser considerada uma ilusória e perigosa ficção. Se a lei moral for reduzida ao absurdo, a teologia é destituída de fundamento e uma teodiceia torna-se desnecessária.
A teologia fundamental, elaborada desde a
racionalidade prático-teleológica, tem conteúdo escatológico e fundamento na
necessidade moral. A denominação kantiana “teologia moral” pode induzir a
equívoco. A rigor, a teologia moral clássica trata das condições de
legitimidade, exequibilidade e imputabilidade das normas e princípios morais.
Quando invocado no âmbito da teologia moral, Deus é o fundamento da veracidade
da lei natural e o revelador da lei divina positiva.
A moral cristã não dispensa a graça divina como condição de possibilidade para a realização moral. A autonomia moral kantiana, por sua vez, exclui qualquer dado extrínseco à vontade humana como arbitrário. As leis morais são assumidas como mandamentos divinos, se entendidas como leis essenciais de cada vontade livre em si. Kant afirma de modo contundente que a moral, enquanto fundamentada na liberdade e na lei, não necessita de Deus, nem de qualquer fim, pois a razão pura prática é suficiente para determinar a vontade (RGV, AA 6: 3-4). No entanto, admite que, sem uma representação do fim, não há nenhuma determinação da vontade. A pedra fundamental da teologia é o juízo teleológico-prático a priori. A representação teleológica não é posta como fundamento do arbítrio ou como condição prévia ao propósito, mas como consequência necessária das máximas adotadas em conformidade com a lei moral em ordem a um fim [finis in consequentiam veniens] (RGV, AA 6: 4). Embora o fim não seja fundamento (jamais poderia ser o motivo de uma ação conforme a lei), sua representação é condição de possibilidade para a determinação da vontade. Um arbítrio que não tenha uma representação teleológica “sabe porventura como, mas não para onde tem de agir, não pode bastar-se a si mesmo” (RGV, AA 6: 4)6. Trata-se de uma representação teleológica necessária, o “para onde” construído pela ação conforme o dever.
A representação teleológica,
exigida como condição
de possibilidade para a
determinação da vontade, é escatológica. Deus é apresentado como objeto da
esperança, pois somente
uma vontade moralmente
perfeita e onipotente
pode assegurar o
sumo bem como
efeito do que
a lei impõe
como dever. A lei que
remete à moralidade tem de remeter, desinteressadamente e a partir de
uma simples razão imparcial,
à felicidade adequada
àquela moralidade. A
lei se refere
diretamente à moralidade, que depende da liberdade humana; e
indiretamente à máxima beatitude, que demanda a existência de Deus como “ser
superior, moral, santíssimo e onipotente,
o único que
pode unir os
dois elementos desse
bem supremo” (RGV, AA 6: 5). A
legislação da razão pura conduz à pressuposição da existência de uma causa
adequada ao efeito exigido pela moralidade, isto é, a postular a existência de Deus como
necessariamente pertencente à possibilidade do sumo bem (KpV, A 223-224). Deus
é, sob essa perspectiva, a “ideia de um objeto que contém em si a condição
formal de todos os fins [...] o fim que contém a condição iniludível e, ao
mesmo tempo, suficiente de todos os outros é o fim último” (RGV, 6: 5-6). Deus
não é o motivo moral, mas causa da realidade objetiva do conceito de bem
supremo (WDO, AA 8: 139). A ideia de Deus que na esfera teorética é meramente
regulativa, na esfera prático-teleológica “não é vazia porque alivia a nossa
natural necessidade de pensar um fim último qualquer que possa ser justificado
pela razão para todo o nosso fazer e deixar tomado no seu todo, necessidade que
seria, aliás, um obstáculo para a decisão moral” (RGV, AA 6: 5). Se é verdade
que a afirmação prática desse fim não acrescenta nenhum dever, é
certo, porém, que a moral
não pode ser
indiferente “à combinação
da finalidade pela liberdade com
a finalidade da natureza, combinação de que não podemos prescindir” (RGV, AA 6:
5).
A imortalidade da alma também é defendida em
chave escatológica no cânone da Crítica da Razão Pura. É preciso admitir, como
ideia da razão praticamente necessária, um “reino da graça, onde nos aguarda
toda a felicidade, a menos que nós próprios
nos limitemos na
nossa parte de
felicidade, ao tornarmo-nos
indignos de ser felizes” (KrV, A 812/B 840). A argumentação kantiana se
apoia ora na inadequação entre “os excelentes dons da natureza humana e a
brevidade da vida” (KrV, A 827/ B 855), ora na necessidade de “unidade dos fins
sob a lei moral”, para que os justos possam ter a proporção de felicidade
compatível à dignidade de sua moralidade (KrV, A 828/ B 856). “Deus e uma vida
futura são, portanto, segundo
os princípios da
razão pura, pressupostos
inseparáveis da obrigação que nos
impõe essa mesma razão” (KrV, A 811/ B 839). O vacilo sobre essas matérias de
fé derruba os princípios morais e nos tornaria dignos de desprezo (KrV, A 828/
B 856).
Na carta de Kant a Stäudlin, de 4 de maio de 1793, Kant associa a teologia e a religião a seu programa filosófico, como resposta à questão da esperança. A escatologia é a teologia fundamental, base para toda reflexão teológica possível. A relação entre a razão pura prática e o cristianismo é apresentada como parte do problema crítico-transcendental.
- O meu plano, já feito há algum tempo, para o tratamento do campo da filosofia pura que me compete baseava-se na reso-lução das três tarefas: 1) O que posso eu saber? (metafísica) 2) O que devo fazer? (moralidade) 3) O que posso esperar? (religião); que deveria ser seguido finalmente pelo quarto: O que é o homem? (antropologia; sobre a qual já ensinei anual-mente na universidade por mais de 20 anos). Com o escrito seguinte, A religião nos limites da simples razão, tentei com-pletar a terceira parte do meu plano. Neste trabalho procedi conscientemente e com genuíno respeito pela religião cristã, mas também pelo princípio de uma adequada franqueza, nada escondendo, antes apresentando abertamente como creio que seja possível a unificação do cristianismo com a mais pura razão prática. (Br AA 11: 429).
2. Da fé racional à fé reflexionante
No ensaio Que significa orientar-se no pensamento?, Kant fundamenta a legitimidade do pensamento sobre matérias incognoscíveis. Orientar-se no pensamento significa determinar-se no assentimento segundo um princípio subjetivo da mesma razão, em virtude da insuficiência dos princípios objetivos da razão. Trata-se do alargamento do puro conceito do entendimento sob regras do pensamento em geral. Neste caso, dá-se uma omissão da ação concreta do entendimento e até mesmo da pura intuição sensível. Kant ilustra o pensamento como um orientar-se “às escuras num quarto que me é conhecido, quando consigo agarrar um único objeto, cujo lugar tenho na memória” (WDO, AA 8: 135)7. Nesse caso, faço desse objeto a referência a partir da qual aplico meu senso de direção para determinar a posição das outras coisas. A orientação então só é possível “segundo um princípio de diferenciação subjetiva [nach einem subjec-tiven Unterscheidungsgrunde]”. Enquanto o conhecimento implica a aplicação de um conceito a uma intuição sensível (princípio objetivo de diferenciação), o pensamento implica objetos que não são passíveis de uma intuição. Então o princípio de diferenciação subjetiva que lhe resta é o sentimento de necessidade [Bedürfnis] da própria razão. A necessidade, embora chamada de subjetiva, se refere à universalidade da espécie e não pode ser aplicada apenas de modo casuístico a um determinado contexto pessoal ou sociocultural. A necessidade da ligação sistemática entre a natureza e a liberdade deve representar a possibilidade lógica e transcendental de realização da liberdade na natureza.
A necessidade da razão pode considerar-se de
duas maneiras: no uso teórico e no uso prático. No uso teórico, o conceito de
Deus é um objeto necessário da razão. A razão tem a necessidade de pôr o
conceito do ilimitado como fundamento do limitado e sem a admissão de um
criador inteligente a razão se encontra em dificuldades para aduzir um
fundamento inteligente da ordem, beleza e harmonia do universo. Kant considera
a necessidade no uso prático muito mais importante, porque é incondicionada e
somos constrangidos a pressupor a existência de Deus. A lei moral demanda a
conciliação da liberdade com a natureza. A licença semântica para o
suprassensível encontra seu fundamento na Crítica da Razão Pura, cuja
contribuição positiva é, segundo Kant, a permissão para que a filosofia prática
se estenda “para além dos limites da sensibilidade”, sem que, por isso, a razão
entre em contradição consigo mesma (KrV, B XXV).
Kant rejeita as expressões “pretensão da sã
razão”, “discernimento racional” e “juízo de inspiração racional” como
inapropriadas para definir a atividade do pensamento. Para Kant, nenhuma
designação é mais conveniente que “fé racional”. Qualquer fé, mesmo a histórica
(expressa numa instituição religiosa), deve ser racional, pois a razão é o
critério da verdade. No entanto, toda a fé é, pois, um assentimento
subjetivamente suficiente, mas no plano objetivo, com consciência de sua
insuficiência; portanto, contrapõe-se ao saber. A fé racional nunca será um
saber, pois seus fundamentos não são objetivamente válidos (WDO, AA 8: 140). O
pensamento não dá azo ao entusiasmo delirante da razão dogmática, que
ultrapassa os limites da experiência e afirma conhecer. Deus é assumido como um
postulado. Na ordem teórica, o postulado é uma proposição indemonstrável que
oferece uma regra para a construção de um objeto. Na ordem prática, o postulado
é suposto a partir da lei moral, uma decorrência indemonstrável da ética. Os postulados
têm a significação de evidências e não de imperativos morais. Porque está submetido à lei moral, o homem se vê coagido à crença na
imortalidade da alma e na existência de Deus.
Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que “as coisas
conhecíveis são de três espécies: coisas da opinião [opinabile], fatos
[scibile] e coisas de fé [mere credibile]” (KU, AA 5: 467)8. As coisas de opinião
são aquelas de modo algum cognoscível, qualquer pretensão de conhecimento a
respeito delas é mera fantasia. Os fatos são os objetos para os conceitos, cuja
realidade objetiva pode ser demonstrada. As coisas de fé são os objetos que têm
de ser pensados a priori, em relação ao uso conforme ao dever da razão pura
prática, seja como consequências, seja como fundamentos, mas que são
transcendentes para o uso teórico da mesma. A liberdade “é a única dentre as
ideias da razão para cujo objeto é um fato <Tatsache> e que tem de ser
contada entre os scibilia” (KU, AA 5: 468). O bem supremo deve ser considerado
coisa de fé, ancorada na liberdade como fato que exige a realização de um fim.
Desta espécie é o bem supremo no mundo, atuando mediante a liberdade, cujo conceito não nos pode ser demonstrado de modo suficiente, segundo a sua realidade objetiva, em nenhuma experiência possível, por conseguinte no uso racional teórico. Porém o uso daquele conceito é-nos ordenado no sentido da melhor realização possível daquele fim, mediante a razão prática pura e, em consequência, tem de ser admitido como possível. Este efeito que nos é ordenado em conjunto com as únicas condições da sua possibilidade por nós pensáveis, nomeadamente a da existência de um Deus e da imortalidade da alma, são coisas de fé (res fidei) e na verdade as únicas dentre todos os objetos que assim podem ser chamadas. (KU, 5: 469).
A incredulidade racional,
entendida como a
máxima indiferença da
razão em relação à sua própria
necessidade, ou seja, a renúncia à fé racional, priva as leis morais de toda a
força de móbil e toda a autoridade, o que redunda no não reconhecimento de
nenhum dever. A experiência moral não nos permite acesso conceitual a Deus, mas
a tensão teleológica demanda algum tipo de pensamento representacional animado
pela fé racional que impulsione o agente moral na direção do Deus vivo. A fé racional, base de
qualquer outra fé e até de toda revelação, é a bússola ou o poste indicador que
orienta o pensador especulativo em suas incursões ao suprassensível tanto do
ponto de vista teórico quanto prático (WDO, AA 8: 142).
Em várias obras, especialmente em A religião
nos limites da simples razão, Kant exercita o pensamento sobre matérias
transcendentes à razão teórica: Deus, a liberdade, a imortalidade, o mal, a
graça, a salvação. Kant chama de fé reflexionante o discurso
prático-teleológico constituído de ideias hiperbólicas e feito por necessidade
racional. Trata-se ideias moralmente transcendentes, isto é, que extrapolam o
conteúdo deduzido a priori e qualificável como “ideia religiosa praticamente
necessária” [„praktisch nothwendige Religionsidee“] (RGV AA 6: 145). São ideias
elaboradas pela razão para suprir a incapacidade de satisfazer a sua
necessidade moral, mas sem delas se apropriar como conhecimento ou postulado
necessário. Pode-se reconhecer, portanto, distintas abordagens discursivas com
diferentes condições de legitimidade:
conhecimento (razão teórica), fé racional (razão prática) e
pensamento/fé reflexionante (razão teleológica).
A razão, na consciência da sua incapacidade de satisfazer a sua necessidade moral, estende-se até ideias hiperbólicas [überschwenglichen Ideen] que poderiam suprir tal deficiência, mas sem delas se apropriar como de uma posse ampliada. Não contesta a possibilidade ou a realidade efetiva dos objetos dessas ideias, mas não pode acolhê-las nas suas máximas de pensar e de agir. Espera até que, se no campo insondável do sobrenatural existe ainda algo mais do que o que ela para si consegue tornar compreensível, algo que todavia seria necessário para suplemento da sua impotência moral, este, embora incógnito, virá em ajuda da sua boa vontade, com uma fé que se poderia denominar (acerca da sua possibilidade) fé reflexionante, já que a fé dogmática, que se proclama como um saber, lhe parece dissimulada ou temerária; pois arrojar com as dificuldades contra o que por si mesmo (praticamente) se mantém firme, quando elas concernem a questões transcendentes, é só um afazer acidental (parergon). (RGV, AA 6: 52).
A
atenção a essa
diferença de perspectiva
discursiva, assim como a seus
distintos estatutos, evitaria os caminhos sem saída de uma interpretação
monolítica da razão kantiana. Grande parte das polêmicas, enigmas e
contradições em torno das doutrinas
expostas em A religião nos limites da simples razão deve-se à insistência em
interpretar os textos sobre temas teológicos e religiosos à luz das condições
de legitimidade da razão teórica. Na verdade, não conseguiríamos reduzir a
razão pluridimensional a um único estatuto procedimental. Por exemplo, o
conceito de filosofia transcendental, apresentado no prefácio à segunda edição
da primeira crítica, é tão estreito que não comporta os princípios e conceitos
fundamentais da moralidade. No âmbito da Crítica da Razão Pura, o componente
empírico da moralidade é considerado bastardo e jamais assimilado pela
filosofia transcendental. É esse o sentido da afirmação de que a questão da
liberdade também diz respeito à psicologia, embora deva ser resolvida pela
filosofia transcendental (KrV, A 15/B 29. A 535/B 563). Somente no âmbito da
racionalidade prática é possível uma espécie de sensação (ArtvonEmpfindung)
produzida unicamente pela legislação da razão prática, o sentimento de respeito
pela epifania da lei moral (KpV A 56). A razão teórica, prática, estética e
teleológica possuem princípios diversos e condições de legitimidade diferentes.
Considerações Finais
A preocupação teológica sempre esteve no cerne do objetivo kantiano desde o início do projeto crítico. É errôneo considerar que Kant seja ateu, agnóstico ou deísta com base na recepção de seu sistema ou em presumidas consequências de sua doutrina sobre a cultura. Kant definiu-se como teísta, no sentido em que a experiência moral envolve a relação com um Deus vivo. Privar a ação moral da representação teleológica necessária à representação da vontade conduz a frustração do fim preconizado na lei. A teologia que emerge do fato moral pode ser entendida como uma teleologia da liberdade, tendo, portanto, caráter eminentemente moral.
Embora a teologia se fundamente no fato moral, ela não é redutível à moralidade. Antes, a teologia fundamental de Kant é radicada num juízo teleológico-prático a priori e seu conteúdo é escatológico. A escatologia serve como o núcleo de irradiação do pensamento teológico, que mantém como critério imprescindível a fé racional. A teologia parte dos conteúdos da fé racional para projetar uma imagem moral do mundo pelo pensamento. O pensar é uma atividade consciente de sua insuficiência objetiva, mas realizada por necessidade [Bedürfnis] racional. Isso justifica o fato de Kant ter abordado temas peculiares à teologia, embora não sejam passíveis de conhecimento. A teologia crítica tem estatuto no sistema kantiano, não se trata de uma reflexão ocasional e espúria. Pensamento e conhecimento representam instâncias que não se completam, pois representam perspectivas distintas da racionalidade, tampouco se contradizem; antes, complementam-se sistematicamente.
Referências
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WOOD, Allen. Kant ́s Deism. In: ROSSI, Philip. Kant’s Philosophy of Religion reconsidered. Bloomington: Indiana University Press, 1991, pp. 1-21.
Nota 1:
1.As obras de Kant serão citadas segundo as normas da Akademie-Ausgabe, seguindo o que foiestabelecido pela Sociedade Kant Brasileira, disponível em Normas para citações : Sociedade Kant Brasileira.A Crítica da Razão Pura será citada segundo as edições A (1781) e B (1789). A Crítica da RazãoPrática será citada de acordo com o texto original da primeira edição (1788). A citação será feitana seguinte ordem: abreviatura da obra, número do tomo e número da página. As traduções utili-zadas estão referidas na bibliografia, assim como na primeira citação da obra, nas notas do texto.As traduções das demais obras são de minha responsabilidade As siglas usadas no artigo são asseguintes: Br – Correspondências, KpV - Crítica da Razão Prática, KrV - Crítica da Razão Pura,KU - Crítica da Faculdade do Juízo, MpVT - Sobre o fracasso de toda tentativa filosófica na teodi-ceia, RGV - Religião nos limites da simples razão,SF - O Conflito das faculdades, V-Met - Liçõesde Metafísica, V-Phil-Th - Lições sobre a doutrina filosófica da religião e WDO- Que significaorientar-se no pensamento?
Nota 5:
5.
O termo Gesinnung é
traduzido por Artur
Morão, cuja tradução
da Die Religion
innerhalb der Grenzen
der bloßen Vernunft
utilizamos nesta pesquisa,
como “disposição”. Também
Mary Gregor traduz
por “disposition” em
sua tradução da
Doutrina da Virtude. José Lamego e Alain Renaut traduzem
Gesinnung como intenção. Guido de Almeida traduz Gesinnung como “atitude” em
sua tradução da Fundamentação da Metafísica dos Costumes.Os dicionários
apresentam como alternativas de tradução
os termos “convicção”,
“mentalidade”, “opinião” e
“modo de pensar”.
Parece-me que as alternativas não esgotam o significado de Gesinnung na
filosofia prática kantia-na, especialmente no âmbito da Religion, onde o termo
é utilizado no contexto do mal radical (que remete à doutrina do pecado
original e suas consequências para a natureza do arbítrio humano). Enquanto
“disposição” remete à noção de hábito (Gewohnheit) adquirido ou exercitado como
se fosse uma aptidão
natural, disposição biológica
da espécie, o que poderia
representar uma base
empírica nitidamente rechaçada por Kant para a caracterização da
Gesinnung; “intenção” ou “pos-tura” não parece denotar o caráter permanente da
postura prática do sujeito. Por outro lado, os ter-mos “convicção”,
“mentalidade” e opinião” podem remeter a um processo intelectual antecedente à
consolidação da Gesinnung, o que não cabe no voluntarismo kantiano, sobretudo
na aplicação à doutrina do mal radical, onde a Gesinnung é constituída por ato
realizado fora do tempo, antes de qualquer uso da liberdade na experiência e
caracterizada como natureza do arbítrio (RGV, AA 6: 22). Visando conservar a
riqueza semântica do termo, manteremos no artigo o termo alemão Gesinnung.
Link do Artigo completo:
https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/53427
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